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Katia Canton, 2005


Trecho de texto para o catálogo da exposição “Teresa Nazar na Vanguarda Paulista (1965-1975)”, Museu de Arte Brasileira da FAAP, São Paulo, 2005

O ESPÍRITO DE TERESA

 

“quando a gente se identifica com o trabalho e os materiais de um marceneiro, serralheiro ou pedreiro, abandona as formas tradicionais da pintura e do desenho para, através do trabalho puramente mecânico—serrar, parafusar e pregar — refletir a realidade que nos cerca”.

 

A força e o sentido de um pensar coletivo emolduravam a produção de Teresa Nazar nos anos 1960, no Brasil. Ao abdicar da pintura e do desenho, que tomavam corpo a partir de uma destreza técnica e um desejo expressivo, e mergulhar na ação de juntar peças—muitas vezes retiradas de ferros-velhos; outras vezes adaptadas de suas próprias roupas e antigos objetos domésticos—Teresa passa a acreditar no poder da atitude do artista.

Essa atitude, no caso de sua arte, se inscreve num aproveitamento de materiais cotidianos, numa construção formal direta, alargada, como em um zoom fotográfico, plena de texturas, cores e relevos, e numa temática que diz tanto respeito às vivências diminutas do cotidiano, quanto à grandiosidade dos fatos que marcaram o mundo de então.

Assim, por exemplo, seus quadros são povoados com imagens de mulheres dentro de enormes secadores de cabelo em salões de beleza, pessoas se acumulando na rotina diária dos transportes públicos, como em bondes e ônibus, recém-nascidos agrupados em berçários. Outras obras mostram as grandes protagonistas da vida moderna dos anos 1960, como o aparelho de TV como presença fundamental no cotidiano doméstico das famílias, e a série astronautas, simbolizando a chegada do homem à Lua.

Sua obra ganha uma força direta da construção da matéria. Trata-se de matéria  pesada, feita com placas de madeira ou metal. A artista cola, parafusa e prega pedaços de metal, plástico, tecido, madeira e o que mais encontrar, cumprindo um fazer dotado de energia solar,masculina.

Nesse momento preciso, emoldurado historicamente pelo endurecimento dos governos militares na América Latina e da institucionalização da Guerra Fria, Teresa modifica sua ação como artista. Acrescenta ao legado expressionista da tradição latino-americana, uma linguagem pop, de capacidade imediata de comunicação, impacto na dimensão—as obras têm mais de um metro de comprimento e largura—variedade de cores e texturas, proporcionada pelos materiais. A esses elementos ela acrescenta uma fina ironia. Trata-se de fato de uma certa irreverência, fabricada de um humor refinado, materializada a partir do aproveitamento de sucatas ou de materiais que se destinam a fins que não o fazer artístico, além de uma composição direta e exuberante das figuras nos quadros.

Ao construir uma figura feminina no plano, usando o próprio cinto de seu antigo casaco de couro, ao colar bobs verdadeiros à cabeça de uma mulher pintada em sua obra, ou ao aproveitar tecidos de um projeto de estamparia desenvolvido para a Rhodia, por exemplo, Teresa Nazar assina um corpo de obras extremamente feminino. Eis o espírito de Teresa: uma junção consistente e original da força e decisão masculinas com sensibilidade, prazer estético e um humor inconfundivelmente femininos. 

 

O LEGADO DE TERESA

“Há algo momentâneo, que pode chocar o meio, mostrando a insignificância das coisas e das idéias, o desprezo pelos valores estabelecidos e também algo mais: a validade na escolha dos meios de expressão artística”.

Teresa Nazar proferiu essas palavras em 1966, em entrevista à imprensa por ocasião de um “apeningue”--abrasileiramento bem humorado da palavra happening, em inglês—que reuniu naquele ano, na galeria Atrium, em São Paulo, os artistas Teresa Nazar, Antonio Dias, Carlos Vergara, Hélio Oiticica, Nicolas Vlavianos, Pedro Escosteguy, Rubens Gerchman e Maria Helena Chartuni.

A idéia então era a de fabricar um acontecimento que colocaria o público numa situação não apenas de observador, mas também de participante, numa tentativa de resgatar a vitalidade e a potência da arte no contexto da vida.

Teresa sempre buscou essa vitalidade. É essa consistente busca que faz com que suas pinturas, feitas inicialmente para serem observadas, ganhem volume e passem a ser feitas com os materiais que estão na vida, no dia-a-dia de qualquer pessoa.

Todo o corpo de sua obra que se desenvolve no decorrer dos anos 60 se impõe ao público, se escancara, pede sua participação, de tão exuberante e direto.

Esse legado é precioso justamente na medida em que é corajoso.Vejamos alguns exemplos. Numa cena de cabeleireiro, uma seqüência de mulheres com as cabeças enfiadas em secadores de cabelo metálico parece tão lunática quanto toda uma série, intitulada Astronautas, em que capacetes espaciais, naves, máscaras e fios se constroem com metais, telas aramadas, pregos, plástico e vidro. Construída com uma variedade imensa de materiais pintados, lixados e pregados, a pintura Televisão, exibe um casal de perfil com o aparelho ligado, no meio do quadro. Dentro da tela do aparelho, um rosto em close up é acompanhado de um fantasma cinzento, reproduzindo ironicamente os assíduos sombreamentos-fantasmas que teimavam em aparecer acompanhando as imagens das TV iniciais.

Ônibus, uma obra de 1972, é feita com retalhos de tecidos e couros e folhas finas de metal plissado cobrindo roupas, bancos, bolsas e adereços dos passageiros retratados. Dentro do repertório das vestimentas, exibido por uma mulher de pé, está ainda um segmento do tecido estampado pela artista para um projeto da Rhodia. Nos anos, 1967, 1968 e 1969, junto com artistas como Vlavianos, Caciporé Torres, Samico, Manabu Mabe, Alfredo Volpi, Nelson Leirner, Donato Ferrari, Tomie Ohtake, entre outros, a artista desenvolveu uma série de estampas exclusivas para modelos de roupas inéditas.

Teresa desenvolveu também capas de livros para as editoras Melhoramentos e Martins, além de ilustrações para jornais e calendários.Todos esses projetos pareciam formas de resgatar aquela vitalidade e o engajamento da arte com a vida, perseguidos por ela.

No início dos anos 1970, fase final de sua pintura, Teresa Nazar parece menos comprometida com uma visualidade e uma irreverência pop e mais interessada nas texturas, relevos e composições regidas pelas formas do corpo feminino no espaço. Nesse contexto aparecem os quadros com vários perfis, colocados lado-a-lado, quase interpenetrados. Aparecem mulheres, em duplas, compondo formas laterais que quase abstraem seus corpos. Num trio feminino, apenas uma das mulheres, de frente, tem um dos seios feitos com uma bola de resina cortada e colada.

Depois dessa fase, quando os anos 1970 colocaram em vigência o AI5 e outros mecanismos de cerceamento da arte e da vida, Teresa Nazar resolveu dedicar-se exclusivamente à galeria Multipla. Como ela mesma atestou em algumas entrevistas a críticos, Teresa não se contentaria em ser uma artista de finais de semana. A vitalidade, para Teresa Nazar, necessariamente rima com uma dedicação que beira a obsessão.

Com a galeria, a artista encontrou uma outra maneira de manter uma atitude política e coerente. Por trás do conceito de múltiplo está a possibilidade do alargamento da acessibilidade artística. Essa foi a oportunidade possível, vivida intensamente por ela.

Teresa Nazar nos deixou um legado de força, beleza, persistência e feminilidade.

 

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