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Guy Amado, 2001

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Texto para o catálogo Temporada de Projetos, Paço das Artes, São Paulo, 2001​

É difícil se debruçar sobre a trajetória de Nelson Screnci e apreender claramente um mote para sua produção. O processo de pintar em si, e todas as instâncias nele compreendidas da concepção à prática, o embate com os materiais, o rigor esquemático, o exercício de equilíbrio que domina suas composições e ainda o desprendimento que configura seu vasto repertório, parecem denunciar um envolvimento com a fatura pictórica para além das instâncias de uma categorização possível.
À aparente diversidade temática de sua obra, que permeia sua poética nestes mais de vinte anos de trajetória, somam-se aspectos que encerram uma leitura mais abrangente que a contemplação aleatória possa talvez sugerir. Interessa-se pela paisagem, que pode emergir como a malha urbana da metrópole e os microcosmos que nela se encerram – pano de funde de As mil e uma imagens, aqui exposta, onde parte da estrutura de composição e noção de circularidade de leitura propostas por Jorge Luiz Borges em suas Mil e uma noites, para propor um jogo de olhar onde cada uma das pequenas imagens (precisamente mil ao todo) que compõem o painel adquirem a leitura de janelas, cada qual guardando narrativas possíveis e diversas, completadas pela participação do espectador. A mesma paisagem pode também se manifestar como reverência tranquila a mestres de nossa pintura, como explicitado em suas apaixonadas Guignardianas e em séries subjacentes. Neste surpreendente percurso, surgem ainda as apropriações pessoais que executa partindo da estética e mecanismos da pop e conceitual art, releituras que podem exprimir ora uma posição crítica em relação a aspectos da cultura de massa como a mecanismos internos do próprio circuito artístico.
Diversos elementos recorrentes em sua poética são perceptíveis em Eldorado, peça aqui apresentada. Detecta-se neste recorte de paisagem urbana – que elege com o distanciamento de quem não almeja outra intenção que não a observação e constatação de uma situação social estabelecida – boa parte de seu repertório estilístico: a grade construtiva aliada a uma estrutura compositiva serial, modular, a pincelada minuciosa que remete menos ao virtuosismo que ao afetivo, a alusão a uma brasilidade próxima mas esquecida, sempre valorizada em sua produção. À singeleza sugerida pela obra contrapõe-se, sutil, o comentário sarcástico embutido no título: ao associar o mito do Eldorado inatingível, terra de prazeres e riquezas incalculáveis, ao contexto da favela e os aglomerados urbanos da periferia – termo que cada vez menos traduz efetivamente no que consiste esta massa populacional informe que se incorpora mais e mais, indistintamente, à malha  da metrópole – Nelson sinaliza o percurso dos fluxos migratórios para a metrópole promissora, onde logo se esvanecem os sonhos dos que buscam melhores condições de vida. E que então passam a viver sob a eterna condição de (des)esperança, materializada na precariedade de suas moradias, sempre à espera do próximo tijolo ou tábua, num processo em que o porvir e o inacabado é assimilado com resignação. Como a própria pintura de Screnci, onde essa incompletude pode se manifestar ora como um dado arbitrário na fatura da obra, ou simplesmente pela certeza da próxima incursão. Parece movido por uma inquietude de alma e um inconformismo irreverente, aliados a um sentido de experimentação e a convicção de que ainda há muito a ser pintado.

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