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Dispostas em paredes e pelo chão, as partes que compõem a instalação Um enquanto outro dispensam descrição, justamente porque a sua natureza ambígua potencializa-se na incógnita, sem que haja necessidade de equações que a desvende. O que está em jogo é praticar a corrosão de idiossincrasias que se pautam em símbolos estagnados pela estereotipia e pelo caráter folclórico ou dogmático por elas carregados. Contudo ― e de maneira contrária ao posto como prerrogativa ―, tudo também leva a crer que as chaves de leitura para essa obra chamam o exercício da descrição, ainda que este seja praticado de modo semelhante a quando se atravessa a rua para atingir outro lugar, buscando alcançar alguma via perdida por entre a paisagem urbana. Por isso, dizer que a instalação Um enquanto outro é composta por origamis embebidos, atolados ou incrustados em cera de abelha ― despejada sobre cada objeto de maneira mais ou menos aleatória, buscando aí o inevitável confronto com o imprevisível ―, é dizer pouco. Mas é o suficiente para atravessarmos essa rua que leva a lugares capazes de traduzir, em partes, o que a instalação já pretende, por sua vez, traduzir. Por isso, Um enquanto outro, enquanto um[1], em sua condição de texto, é a tentativa irrestrita, mas também impraticável ― porque barrada pela condição limitante que arma o esquema para a leitura do simbólico ― de se colocar diante de uma obra com a intenção de extrair alguma experiência capaz de ser disseminada.

 

Em compensação, no exercício irrefreável de tradução do traduzido, algo de lacunar, indecifrável e lisérgico é entrevisto. Disso emerge, sem pretensões à dissuasão, o seu centro de interesse: fazer com que a leitura de uma obra produza um desvio para a confusão. E, dada a aparente inutilidade do empreendimento, confundere, apesar de deliberadamente apelar ao caótico, é antes o traço que estrutura um possível desenho para o entendimento de identidade, partindo do princípio da diferença encontrada na unidade. Trata-se de fundir alguns elementos (con), para então atingir um grau singular de identidade. Um enquanto outro pensa o sujeito de maneira singular, a partir de um dado elementar: ele é um, porque é confuso. Ele é um, porque é muitos. O que incide na obra o valor do díspar, daquele que é algo por ser outra coisa. 

 

Depois de atravessar a via da descrição, com pequenas incursões sobre o pensamento que Karina Zen busca engendrar nesse conjunto de origamis presos ao chão e à parede, faltou assinalar que eles reproduzem formas de anjos e de sapos, com pequenas diferenças entre um e outro. Descrição rasa, que não passará indiferente daquele que se ater às condições que a instalação coloca: anjos no chão, imóveis; sapos contra a parede, estáticos. O primeiro atolado de cera e o segundo encoberto, em partes, pelo mesmo material. Ambos em condição de estagnação. E vale insistir em descrever algumas características visuais da obra, pelo fato de o resultado formal dos dois tipos de origamis ser praticamente idêntico. De fato, uma pequena dobra, feita ou desfeita, e o sapo vira anjo e vice-versa. O que acaba por configurar um anjo-sapo ou um sapo-anjo. A ordem, de fato, não altera a intenção: encontrar nessa confusão um meio legítimo de pensar a diferença. De pensar a diferença a partir da unidade. O que levaria ao fato de o sujeito sapo ser, também, anjo, para além de qualquer consideração de oposição de valores. Isso porque não se trata de atenuar fábulas que identifiquem precisamente as diferenças do príncipe (ou do anjo, em seu epíteto teológico) e do sapo. Mas, apesar da diferença, encontrar unidade, ainda que o interesse dessa leitura não atribua nenhum valor à homogeneidade – outro fator estagnante quando ligado à constituição de identidade. Ou no fato de que duas figuras semelhantes podem se transformar em uma única. De modo a reproduzir o que ocorre com K., protagonista em O castelo (1922), quando se encontra com seus ajudantes, Artur e Jeremias. Conforme narra Kafka, diante de sua acirrada decisão de tratá-los por apenas um dos dois nomes, decisão tomada pela incapacidade que K., o agrimensor do conde, teve em identificá-los, um deles, Jeremias, argumenta e diz que outras pessoas são capazes de distingui-los. Ao que K. retruca: “Acredito. Eu mesmo fui testemunha disso, mas só posso ver com os meus olhos, e com eles não consigo distinguir um do outro. Por isso vou tratá-los como sendo um único homem e chamar os dois de Artur (...)”[2]

 

Um enquanto outro trata da indelével condição de “ser e não ser ao mesmo tempo”[3]. Portanto, caberia evocar, inclusive, o princípio de desorientação[4] que, associado à ideia de confusão, pode vir a ser os dois lados da mesma moeda, tratado por Georges Didi-Huberman como um paradigma capaz de explicar a noção de inquietante estranheza freudiana. Sendo a “experiência na qual não sabemos mais exatamente o que está diante de nós e o que não está”[5], a desorientação é aquilo sem o qual o observador não se percebe no mundo, ou pelo menos não percebe a carga psíquica que o subscreve. Já que sem a perda da autoridade da percepção sensorial, quando definida como o principal (e por vezes o único) meio de adquirir conhecimento, não é possível conviver com as diferentes camadas que dão sentido e estruturam o mundo. Ou seja, para encontrar o sentido das coisas, a perda da autoridade dos sentidos se faz necessária. E a perda aparente de algo para observar o mundo se configura como uma porta, uma modalidade perceptiva em que o sujeito se vê de olho no escuro, naquilo que, por ser imperceptível, incita o contato para além da percepção sensorial. Nesse sentido, anjo-sapo ou sapo-anjo, embora distintos, permanecem os mesmos, porque a diferença, sendo o ponto de partida, não exclui a ideia de unidade, aquilo que desenha a identidade constituinte de ambos: diante da finitude e da incapacidade de reter o simbólico em leituras conclusivas de mundo, o sujeito parece dispor de uma chancela para entender, a cada leitura produzida, o grau assumidamente limitante de sua atuação, seja como sapo ou como anjo. De fato, a relação de ambos com os estados limite aferidos pelo mundo se tornam desenhos que, pela presença da matéria cera, fazem com que traços, marcas, manchas e campos de matéria redefinam o espaço visível. Isso ocorre ao mesmo tempo em que rizomas crescem de suas vísceras, conjugando confusão com desorientação. Nessa recorrência ritualística, em que o humano, o sobre-humano e o animal se encontram, confundir e desorientar seriam meios para que sapos e anjos (ou os anjos-sapo e os sapos-anjo) possam conviver com substâncias — no sentido aristotélico do termo — que criam aparentes imbróglios, por serem dialeticamente invisíveis ao mesmo tempo em que são “a possibilidade essencial do visível”[6].

 

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[1] O título Um enquanto outro, enquanto um foi evocado pela artista em uma das conversas mantidas com o autor ao longo da redação do texto, traduzindo, desse modo, o interesse em torná-lo a tradução da tradução, a leitura daquilo já lido. Um ensaio em torno de uma instalação que cria ensejos para que o texto, em conjunto com a obra e partindo dela, se torne a curva que confunde o começo do fim.  

[2] KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 (trad. Modesto Carone).

[3] Trecho do Pós-Poema, de Murilo Mendes, publicado em seu livro Poesia Liberdade (1947). Ver: MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

[4] DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: editora34, 2010 (trad. Paulo Neves), p. 231.

[5] Ibid., p. 232.

[6] DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Florianópolis: Editora da UFSC, 2013 (trad. Marcelo Jacques de Moraes), p. 82.

 

Um enquanto outro, enquanto um

Josué Mattos, 2014

 

Publicado no livro Um enquanto outro - Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo a Cultura -

3C Centro de Criação Contemporânea.

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