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“Flores de plástico não morrem..." (letra de canção; Titãs)​

A obra de Bettina Vaz Guimarães é descendente direta da natureza-morta. A origem do termo natureza-morta vem do inglês still life, que por sua vez é uma adaptação da palavra holandesa stilleven, que se refere a uma natureza parada, inerte, composta de objetos inanimados.
Essa linhagem hereditária surge entre os séculos 16 e 17, particularmente na Holanda, com cenas criadas por artistas envolvendo mesas postas, alimentos, frutas e flores, objetos. Tais escolhas temáticas eram consideradas pouco nobres para a pintura, sobretudo se comparadas aos retratos, cenas históricas e paisagens.
No entanto, é justamente por conta de sua condição mundana – por ser um tema facilmente elaborado dentro dos ambientes domésticos, juntando-se alimentos, garrafas, fruteiras, livros, ou outros objetos – que a natureza-morta se torna tão imprescindível para a arte. Composições feitas a partir daquilo que o artista traz à mão, as naturezas-mortas revelam os mecanismos do fazer artístico. Servem como exercícios de forma, cor, perspectiva, pintura, traço, luz.
Demonstram do que se vive.
A obra de Bettina Vaz Guimarães toma corpo, desde o início dos anos 2000, numa apresentação de imagens afins. Objetos de cozinha, vidros de perfume, detalhes de bicos e roscas pertencentes a bules, garrafas e potes surgem como os assuntos principais de seus desenhos e pinturas.
Em seu trabalho, porém, um deslocamento de sentidos toma corpo. Ali essas imagens mundanas, normalmente relegadas a meros detalhes da existência, ganham uma dimensão inédita. Descolam-se de seus contextos cotidianos, saindo da condição de mero objeto instrumental da vida corriqueira, para adquirir uma tonalidade épica. Nas suas obras cada um dos objetos se torna um verdadeiro monumento à domesticidade.
Assim como as flores plásticas, subvertendo sua origem e condição natural, subordinada à vida na terra, os açucareiros, copos, garrafas plásticas e espelhos da artista se exilam. Saem de uma situação corriqueira, misturada a tantas outras coisas e mecanismos contextuais, para ganhar vida própria. São ampliadas, engrandecidas, suspensas. Tornam-se autônomas e, no processo, se eternalizam.
Os desenhos e pinturas de Bettina Vaz Guimarães têm a consistência narrativa da sinceridade. Alargadas, esgarçadas, ampliadas suas figuras se tornam protagonistas de um jogo de criação bidimensional onde se combinam dimensão afetiva a uma preocupação construtiva.
Quando se encantou pelo desenho e elegeu para assunto os objetos que circundam sua casa, a artista abriu-lhes para o mundo. Liberou cada um deles de suas proporções, contextualizações e cores. Vestiu-lhes com tons em branco e preto e foi buscar na força gestual das linhas uma pesquisa de reconstrução.
No processo, as linhas foram se soltando. Os desenhos se alargaram e passaram a ocupar vários pedaços de papel, unidos em grupos, compondo um mosaico de pinceladas livres. Nessas obras, um coador, uma panelinha, um espremedor, todas as coisas parecem imponentes, libertas de suas narrativas predestinadas. Parecem prestes a encabeçar novas histórias, fábulas da domesticidade.
Nas pinturas recentes, objetos domésticos são novamente recortados e destacados de seus contextos. Nessa condição, eles se multiplicam e ganham cores.
Uma figura se soma à outra, imagens se atropelam e se sobrepõem. Formas e tons abundam.
Nessa densidade inédita de coisas mundanas, surgem construções pictóricas repletas de nuances e de diferentes vibrações. Muitas vezes as cenas parecem ganhar nova vida. Parecem ter movimento. É como se as telas narrassem fábulas encenadas pelos próprios objetos: a vassoura é que varre, o espremedor é que espreme; o liquidificador é que liquidifica.
Interessante concluir pensando em como esse mundo do feminino, composto por imagens de domesticidade, é milenarmente associado à intimidade e a uma escala de dimensões miniaturizadas. A crítica literária norte-americana Susan Stewart relaciona a miniatura ao discurso do petite feminine, em que a redução das dimensões físicas resulta numa multiplicação de propriedades ideológicas, que conjugam intimidade, nostalgia e a uma ligação com o colecionismo.
(livro On Longing: narrative, miniature, the gigantic, the souvenir, the collection, de Susan Stewart (Baltimore: Johns Hopkins U Press, 1984)
Ao alargar suas xícaras, bules, vidros de perfume, garrafas plásticas e peneiras e ao liberar esses objetos no espaço, Bettina modifica seus destinos. Confere-lhes potência; solta-lhes sobre o branco dos papéis ou as cores das telas, para que possam ser e se fazer arte.

FÁBULAS DA DOMESTICIDADE

Katia Canton, 2007​

 

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